Por Cesar A. Guimarães Pereira
1. Introdução
O setor portuário esteve à espera, nos últimos
meses, de um pacote de investimentos e mudanças no marco regulatório. Em 2008,
o governo federal editou o Decreto 6.620, com base na lei 8.630 (Lei de
Modernização dos Portos) e na lei 10.233 (que instituiu a ANTAQ). Algumas das
características mais marcantes do Decreto 6.620 eram (i) a disciplina da
concessão de portos como um todo, não apenas de instalações ou terminais
portuários, e (ii) a definição de diferenças claras entre os terminais de uso
público e os de uso privativo, baseadas na exigência de que os terminais de uso
privativo deveriam movimentar principal ou exclusivamente sua carga própria.
Dizia-se que, após o Decreto 6.620, terminais de uso privativo sem carga
própria predominante, como Embraport, Itapoá, Portonave e Cotegipe1,
não mais poderiam ser criados.
O Decreto 6.620, por si só, foi insuficiente para
evitar que Itapoá entrasse em operação comercial e a Embraport praticamente
concluísse as suas obras de construção, bem como para provocar a adaptação ou o
fechamento dos terminais de Portonave e Cotegipe. Um processo em andamento no
Tribunal de Contas da União (TCU) tende a ser encerrado com determinações e
sanções dirigidas à ANTAQ para que a situação de tais terminais seja corrigida
(TC-015.916/2009-0)2. Embora a instrução técnica do TCU seja
fortemente a favor da rejeição de terminais de uso privativo que atuem como se
fossem de uso público (isto é, sem carga própria predominante), tais como os
quatro já referidos, o caso ainda não foi examinado pelo Tribunal. Não se sabe
se o Tribunal irá seguir o relatório da área técnica, especialmente depois da
edição da MP 595.
A MP 595 consiste em uma medida provisória.
Trata-se de instrumento legislativo editado pelo Presidente da República,
sujeito a posterior aprovação pelo Congresso Nacional. Tem força de lei por 60
dias, prorrogáveis por igual período. Até o final dos 120 dias a MP deve ser
convertida em lei. Caso rejeitada ou não apreciada, não poderá ser
reapresentada senão na legislatura seguinte. A edição da MP pressupõe que a
matéria seja “relevante” e “urgente”. Estes são conceitos abertos e
indeterminados. Nem o Congresso nem o Judiciário dispõem-se normalmente a
controlá-los. Porém, o Congresso já teve a oportunidade de rejeitar medidas
provisórias por falta de tais requisitos. Um exemplo é o da MP 320, que
regulava um novo regime para os portos secos (denominado “CLIA”). Foi rejeitada
porque não haviam sido cumpridos simultaneamente os dois requisitos,
convertendo-se a MP em projeto de lei. É pelo menos possível que o mesmo possa
ocorrer com a MP 595.
Durante os 120 dias da tramitação esperada da MP
595, serão discutidas as 646 propostas de emenda apresentadas por parlamentares
de todos os matizes políticos. Uma comissão especial foi nomeada para examinar
e formular um relatório sobre as emendas e apresentar, se for o caso, uma
versão revisada ou um substitutivo para a lei de conversão. As posições-chave
na comissão serão as de presidente e relator – este, encarregado de preparar um
relatório inicial e submetê-lo à apreciação da comissão. Tais posições devem
ser preenchidas só quando do reinício do ano legislativo, em fevereiro. Já
então o Congresso terá um novo presidente, o que poderá introduzir um novo
fator político. Sob uma presidência recentemente eleita, o Congresso pode-se
ver politicamente mais disposto a promover mudanças no diploma em relação ao
texto original do Poder Executivo. Se o Congresso aprovar a versão submetida
pelo Executivo ou outra sobre a mesma matéria, tratar-se-á de uma “lei de
conversão”, que será editada com plena força de lei. Se, ao contrário, a MP for
rejeitada pelo Congresso, deve haver um decreto legislativo regulando os atos
praticados na vigência da MP.
2. Alterações concretas
As principais características e conceitos da MP
595, especialmente sob o ponto de vista de um terminal portuário, são as
seguintes:
2.1. Extinção dos conceitos de carga própria ou de
terceiro
A divisão entre terminais de uso público e
terminais de uso privativo, tal como conhecida até agora, chega ao fim. Não há
qualquer menção na MP 595 a “carga própria” ou “carga de terceiro”. A distinção
relevante agora é entre terminais dentro dos limites de área do “porto
organizado” ou fora de tais limites. Portanto, um conceito essencial para a MP
595 é o de “área do porto organizado”, que é definida por um decreto
presidencial baseado em parâmetros estipulados de modo genérico pelo art. 2º da
MP 595.
2.2. O critério da localização dos terminais
(dentro ou fora do porto organizado)
Dentro dos limites da área do porto organizado
somente podem existir terminais arrendados ou explorados mediante concessão do
porto como um todo. Não poderá haver novos terminais autorizados dentro da área
do porto organizado. Os terminais arrendados são submetidos a um processo
licitatório e a contratos que trazem em si uma concessão de serviço público3
ou uma autorização (no caso de arrendamentos que tenham como objetivo uma das
finalidades dos incisos II a IV do art. 8º; a do inciso I – terminal de uso
privado – é incompatível com as finalidades por porto organizado previstas no
art. 2º, I, da MP 595); fora da área do porto organizado, a atividade é sujeita
a uma autorização outorgada pelo governo federal (SEP – Secretaria Especial de
Portos da Presidência da República). Porém, não está completamente claro o
tratamento a ser dado aos terminais de uso privativo hoje existentes dentro de
portos organizados, que não se confundem necessariamente com os terminais “de
uso privado” referidos no art. 8º da MP 595. Os arts. 50 e 51 podem ser
interpretados como uma tentativa de permitir-lhes a continuidade de
funcionamento, com uma exigência de adaptação, não precisamente definida, à
nova legislação. Uma interpretação possível é que essa adaptação exigida pelo
art. 50 consistirá, na realidade, na licitação dos terminais de uso privativo –
ou, em casos excepcionais, sua outorga com dispensa ou inexigibilidade de
licitação – hoje existentes dentro dos portos organizados. Isso permitirá que
todos os terminais dentro dos portos organizados submetam-se ao mesmo regime
jurídico, assegurando um ambiente equilibrado de competição.
2.3. Limites para a definição da área do porto
organizado
A importância dada pela MP 595 à área do porto
organizado impõe atenção específica à sua delimitação geográfica, usualmente
denominada “poligonal”, ou seja, um conjunto de linhas que delimitam certo
perímetro, conforme definido em um decreto presidencial. No art. 2º da MP 595,
há parâmetros genéricos sobre o que configura a área do porto organizado.
Porém, a redefinição dos limites geográficos do porto organizado pode ser um
meio de manipulação do regime aplicável às instalações portuárias, tanto para
excluir instalações do regime de arrendamento quanto para impedir a implantação
ou a continuidade de terminais autorizados. Deve-se extrair da MP 595 a
premissa de que o porto organizado é um conceito nuclear para a estruturação do
setor de transporte aquaviário e terrestre, pois consiste em uma referência
para a organização de toda a cadeia de transporte. Desse modo, há uma
preferência legal pela manutenção e ampliação da área do porto organizado, não
por sua redução. Por isso, muito embora a exigência de motivação para as
alterações da área do porto organizada deva ser generalizada, deve-se
reconhecer que há uma presunção relativa em favor da manutenção ou ampliação da
área do porto organizado; para promover sua redução, tanto em cotejo com as
áreas hoje existentes quanto em relação às que forem acrescidas a estas, o
Poder Público deve superar esta presunção e demonstrar especificamente os
fundamentos fáticos para a redução. A mera pretensão de substituir o regime de
exploração das instalações portuárias – abandonando a concessão ou arrendamento
e adotando a autorização – não autoriza a redução da área do porto organizado.
2.4. A interpretação do conceito de instalação de
uso privado
A intenção da MP 595 parece ter sido a de
estabelecer instalações portuárias fora do porto organizado com liberdade para
movimentar carga de qualquer titularidade ou natureza, eliminando a exigência
de movimentação predominante de carga própria. Isso é indicado em sua exposição
de motivos (cujo item 7 afirma: “O novo marco proposto elimina a distinção
entre movimentação de carga própria e carga de terceiros como elemento
essencial para a exploração das instalações portuárias autorizadas”).
Porém, parece ter atingido o resultado oposto. O art. 8º trata das instalações
sujeitas a autorização. Alude a quatro espécies, a “estação de transbordo de
carga”, “a instalação portuária de pequeno porte”, a “instalação
portuária de turismo” e o “terminal de uso privado”. As três
primeiras têm finalidades precisamente definidas no art. 2º. A última é
definida apenas como “instalação portuária explorada mediante autorização,
localizada fora da área do porto organizado”. A única indicação da sua
finalidade é a sua definição como “de uso privado”, o que denota que o
seu objetivo é atender as necessidades próprias do seu titular (daí seu “uso
privado”). Por decorrência, essa figura deve corresponder ao extinto “terminal
de uso privativo exclusivo”, destinado apenas ao chamado “autosserviço”, o
atendimento de interesses próprios do seu titular. Não há nada na MP 595, ao
contrário do que havia na Lei 8.630, que autorize ao terminal de uso privado a
realização de atividades portuárias dirigidas ao público em geral – as quais
não se enquadrariam em qualquer noção possível de “uso privado”, conceito
adotado pela MP 595. A referência do art. 8º ao conteúdo do contrato também não
nega esta conclusão, uma vez que não é distinta do que antes se previa quanto
ao terminal de uso privativo exclusivo e que o art. 8º se estende às quatro
espécies de instalações autorizadas, pelo que o conteúdo previsto para o
contrato de adesão se aplica a cada uma delas no que couber. Em conclusão, a
movimentação de carga em geral – ou seja, a prestação de serviços portuários ou
o desempenho de atividade portuária dirigida indiscriminadamente ao público,
titular da carga a ser movimentada – somente pode ser realizada por terminais
localizados na área do porto organizado, já que este é definido pelo art. 2º,
I, como o “bem público construído e aparelhado para atender a
necessidades de navegação, de movimentação de passageiros ou de movimentação e
armazenagem de mercadorias”. A concentração dessas atividades nos portos
organizados permite a estruturação mais racional do setor de transportes, uma
vez que os portos organizados são pontos de referência tanto para o transporte
aquaviário para o transporte terrestre e a infraestrutura correspondente. Não é
casual que praticamente todos os terminais de uso privativo misto destinados a
movimentar carga de terceiros estejam dentro ou nas imediações de portos
organizados, compartilhando a sua estrutura de acesso terrestre e aquaviário.
2.5. Serviço portuário e atividade portuária
Em diversas passagens, a MP 595 substitui a
expressão “serviço” por “atividade”, bem como tenta separar os conceitos de
“concessão” (de um porto como um todo) de “arrendamento” (de instalações
portuárias específicas). Essa mudança de nomenclatura é insuficiente para
eliminar o conceito de serviço público portuário assegurado pela Constituição Federal ou para
descaracterizar a atuação dos terminais arrendados no porto organizado como
prestadores de serviço público. As regras do art. 5º acerca de garantias aos
usuários são uma confirmação disso. Porém, é inegável que a MP 595 tentou
afastar-se da noção de serviço público portuário ao eliminar qualquer alusão a
terminais de uso público ou privado – ou seja, não mais definindo os terminais
a partir de sua destinação ou missão, mas de sua localização e titularidade da
área em que são instalados. Pode-se supor que haverá interpretação, equivocada
em face dos arts. 22, XII, “f”, e 175 da Constituição Federal, no sentido de
que a MP 595 extinguiu o serviço público portuário. As decorrências dessa
interpretação (inconstitucional) seriam de alcance gigantesco, especialmente em
face da estrutura consolidada hoje existente no setor portuário brasileiro.
2.6. Organização institucional: o CAP – Conselho da
Autoridade Portuária
O poder político e jurídico no setor portuário é
centralizado nas mãos da SEP (o governo federal; o poder concedente) e, em
menor medida, da ANTAQ (o ente regulador). As autoridades portuárias locais
perdem a maior parte da sua autonomia e liberdade contratual, ficando sujeitas
a uma supervisão mais intensa da ANTAQ. O CAP – Conselho da Autoridade
Portuária – perde quase toda a sua importância, deixando de ser um órgão
deliberativo para passar a ter caráter consultivo para a Autoridade Portuária,
sem poderes efetivos. O CAP tinha toda a sua composição e competência previstas
na lei 8.630, hoje revogada. Tais regras foram suprimidas e não foram
substituídas por outras na MP 595. Porém, de acordo com o art. 53 da MP 595, o
CAP continuará a funcionar provisoriamente de acordo com as regras atuais até
um decreto regulamentar ou outros atos regulamentares venham a ser editados.
2.7. Organização institucional: definição do poder
concedente
O poder concedente nas concessões de portos
federais é a SEP. Nos portos que foram temporariamente delegados a Estados ou
Municípios, como Paranaguá e Itajaí, a MP 595 não é completamente precisa
acerca de quem é o poder concedente: a União, representada pela SEP, ou o
Estado ou Município, representado pela autoridade portuária local (ou seja, o
ente delegante ou o ente delegado). Uma interpretação sistemática parece
indicar que o poder concedente é a autoridade portuária local, atuando em nome
do Estado ou Município. Mas esta interpretação também apresenta problemas. Os
arts. 6º e 9º, por exemplo, preveem que a ANTAQ conduzirá as licitações ou
processos seletivos segundo as diretrizes do poder concedente. Porém, o art. 27
da Lei 10.233, com a redação da MP 595, prevê que a ANTAQ supervisiona todos os
portos, incluindo os delegados a cidades ou estados. Portanto, a ANTAQ estaria
simultaneamente sob as instruções dos poderes concedentes (cidades ou estados)
e na condição de autoridade supervisora das entidades vinculadas a tais poderes
concedentes. Outro ponto peculiar é a possível diferença de extensão das
atribuições da ANTAQ num caso e outro. O art. 51-A da Lei 10.233 foi alterado
para que a ANTAQ passe a ter competência para fiscalização diretamente das
atividades de operadores portuários, arrendatárias e autorizatárias de
instalações portuárias (“Fica atribuída à ANTAQ a competência de
fiscalização das atividades desenvolvidas pelas administrações de portos
organizados, pelos operadores portuários e pelas arrendatárias ou
autorizatárias de instalações portuárias, observado o disposto na Medida
Provisória nº 595, de 6 de dezembro de 2012”). Porém, de acordo com o § 1º
deste dispositivo, “Na atribuição citada no caput incluem-se as
administrações dos portos objeto de convênios de delegação celebrados nos
termos da Lei nº 9.277, de 10 de maio de 1996”. Não há nenhuma alusão aos
respectivos operadores portuários ou arrendatários, o que pode indicar que
estes são fiscalizados diretamente pelas administrações locais e apenas
indiretamente pela ANTAQ, na medida em que esta poderia fiscalizar as
administrações portuárias locais. O tema pode ser relevante, por exemplo, na
aplicação de sanções pela ANTAQ (art. 78-A e § 1º da Lei 10.233).
2.8. Organização institucional: relação entre ANTAQ
e SEP
A ANTAQ está agora claramente em posição
hierárquica inferior à SEP tanto em termos políticos quanto jurídicos. De
acordo com a estrutura criada pelas alterações da Lei 10.233 introduzidas pela
MP 595, a ANTAQ não é mais vinculada ao Ministério dos Transportes, mas à SEP.
Ainda mantém deveres relacionados com o Ministério dos Transportes, mas apenas
no setor de transporte aquaviário, não de portos. De acordo com o art. 21 da
Lei 10233, na redação da MP 595, a ANTAQ é formalmente vinculada à SEP. A SEP
também assumiu novas atribuições. No regime revogado, a SEP se encarregava dos
portos marítimos, cabendo ao Ministério dos Transportes a responsabilidade por
portos fluviais e lacustres, exceto os outorgados às companhias docas. Agora,
extingue-se por completo a competência ao Ministério dos Transportes,
concentrando-se na SEP todo o setor portuário marítimo, fluvial e lacustre. Por
outro lado, antes a ANTAQ propunha à SEP os planos gerais de outorga, cabendo à
SEP aprová-los; agora, a SEP é que os elabora (art. 24, § 2º, III, da Lei
10.683, e art. 27, III, da Lei 10.233).
2.9. Ainda a relação entre ANTAQ e SEP
A SEP tem novas competências na condição de “poder
concedente” no âmbito do Poder Executivo federal. Cabe-lhe definir as condições
para as licitações de novas concessões de portos ou arrendamentos, as quais
serão conduzidas pela ANTAQ segundo tais condições, bem como celebrar os
contratos de concessão ou arrendamento e outorgar as autorizações para
terminais de uso privado. Desaparece a possibilidade de as licitações serem
conduzidas e os contratos serem celebrados pelas autoridades portuárias locais
– o que gera um problema de direito intertemporal a ser resolvido quanto às
licitações em curso no momento da edição da MP 595. Também foi suprimida a
competência da ANTAQ para celebrar contratos ou outorgar autorizações no setor
portuário – a ANTAQ mantém algumas competências dessa natureza no setor de
transporte aquaviário, em que ainda se submete em alguns casos ao Ministério
dos Transportes. A ANTAQ tem agora apenas poderes de fiscalização e de
aplicação de sanções – exceto a cassação de concessão, arrendamento ou
autorização, que deve ser aplicada pelo poder concedente (SEP, na esfera
federal). Curiosamente, mantém-se com a ANTAQ a competência para a aplicação da
declaração de inidoneidade, o que confirma que esta declaração, por si só, não
implica a extinção de contrato anterior à aplicação da sanção (art. 78-A da Lei
10.233).
2.10 – As licitações para concessões ou arrendamentos
As concessões de portos e os contratos de
arrendamento, com duração de até 25 anos prorrogáveis por igual período de 25
anos, são outorgados a empresas selecionadas por meio de licitação pública. Os
critérios de julgamento na licitação são preferencialmente uma combinação da
maior movimentação de carga que o licitante se compromete a realizar e o menor
preço cobrado pela operação. Porém, o edital e o regulamento podem também
adotar outros critérios. O art. 6º da MP 595 não é claro sobre se o critério de
“maior movimentação com a menor tarifa” deve ser obrigatoriamente
adotado, admitindo-se sua combinação com outros, ou se poderiam ser adotados
apenas outros critérios “estabelecidos no edital, na forma do regulamento”.
A interpretação mais lógica do dispositivo aponta para a obrigatoriedade do
critério referido no dispositivo, combinado ou não com outros. Ademais, a regra
alude a “menor tarifa”. Como nos contratos de arrendamento e de
concessão portuária a “tarifa” é espécie de remuneração paga à administração
portuária, aludindo-se a “preço” para denotar a importância cobrada do usuário
do terminal, caberá interpretar a regra para definir como se combinarão os
parâmetros de maior movimentação e menor tarifa paga à administração portuária.
Não há previsão de um critério de menor preço, exceto se vier a ser
estabelecido no regulamento ou no edital.
2.11. O chamamento público e processo seletivo para
autorizações
A autorização para terminais portuários fora da
área do porto organizado (definida por decreto presidencial) não é sujeita a
licitação. Se uma empresa tem interesse em uma área, deve apresentar um pedido
de autorização. Haverá um chamamento público para manifestações de interesse de
terceiros. Havendo dois ou mais interessados, deverá haver um processo seletivo
simplificado – nos termos do art. 9º da MP 595, que não configura um processo
licitatório segundo as regras gerais – para a escolha da empresa que receberá a
autorização.
2.12. Permanência da previsão de expansões e
ampliações das instalações
O art. 5º, IX, da MP 595 repete as disposições da
Lei 8.630 e considera como uma previsão necessária no contrato de concessão ou
de arrendamento a que se relaciona com alterações, acréscimos ou expansões das
instalações e atividades. As referências a possíveis expansões para áreas
contíguas, previstas no Decreto 6.620, não são repetidas expressamente na MP
595. Porém, o dispositivo da MP 595 acima citado prevê a possibilidade de
expansões e acréscimos, tal como fazia a lei revogada. O Decreto 6.620 ainda
não foi revogado e é compatível com a MP 595 neste ponto. Desse modo, as
garantias e direitos previstos no Decreto 6.620 devem ser considerados como
recepcionados pela MP 595 e em vigor. Além disso, na maior parte dos casos o
direito a expansões e acréscimos não será afetado pela legislação
superveniente, pois é previsto em contratos aperfeiçoados com base na
legislação anterior e protegidos contra mudanças legislativas (ato jurídico
perfeito). O art. 50 confirma esta conclusão ao exigir a adaptação à MP 595
apenas dos contratos e termos de autorização dos terminais autorizados, não dos
arrendados. Tal adaptação já era uma exigência do art. 47 da Lei 10.233, que
permanece em vigor.
2.13. Compartilhamento de infraestruturas (essential
facilities)
A MP 595 determina a aplicação do compartilhamento
de infraestruturas (essential facilities doctrine) tanto aos terminais
arrendados (nos portos organizados) quanto aos terminais autorizados (de uso
privado, fora das áreas dos portos organizados). Os arts. 7º e 10 da MP 595
atribuem à ANTAQ a competência para regular a utilização (art. 7º) ou o acesso
(art. 10) “por qualquer interessado, às instalações portuárias ... ,
assegurada a remuneração adequada” ao titular do contrato ou da
autorização. Trata-se de uma novidade no setor portuário (já existe em outros
setores, como o art. 59 da Lei 9.478) e cria um instrumento para grande
intervenção regulatória em todos os tipos de instalações portuárias. Haverá
certamente grande debate sobre se esta regra será aplicável aos terminais
arrendados atualmente existentes. Os terminais autorizados, de acordo com o
art. 47 da Lei 10.233 – o qual não foi alterado nem revogado pela MP 595 –,
devem adaptar-se à legislação superveniente e, portanto, serão sujeitos ao novo
regime sem qualquer dúvida.
2.14. O trabalho portuário e o OGMO
O trabalho portuário em si não sofreu mudanças
significativas. O art. 36 prevê que o trabalho portuário será realizado nos
portos organizados por trabalhadores portuários com vínculo empregatício por
prazo indeterminado ou por trabalhadores portuários avulsos (estes vinculados
ao OGMO – Órgão Gestor da Mão de Obra). O art. 36, § 2º, dispõe que os
trabalhadores com vínculo empregatício devem ser selecionados “exclusivamente
dentre trabalhadores portuários avulsos registrados”. A principal discussão
neste campo, fortemente criticada pelos trabalhadores, é a regra do art. 40.
Segundo o dispositivo, faculta-se aos terminais sob regime de autorização “a
contratação de trabalhadores a prazo indeterminado, observado o disposto no
contrato, convenção ou acordo coletivo de trabalho das respectivas categorias
econômicas preponderantes”. Caberá discutir se esta regra se aplica aos
terminais autorizados existentes em que o trabalho portuário é oriundo do OGMO
ou apenas a instalações autorizadas já segundo o art. 8º da MP 595.
2.15. Dragagem
Há um novo capítulo sobre dragagem, prevendo
contratos de “dragagem por resultado” com dez anos de duração a serem licitados
segundo o RDC – Regime Diferenciado de Contratação, um sistema mais flexível de
licitação criado pela Lei 12.462 em 2011. Este sistema não elimina a
possibilidade de outros instrumentos, como a contratação de serviços segundo a
Lei 8.666 ou a dragagem sob regime de concessão administrativa – uma forma de
PPP (parceria público-privada) prevista na Lei 11.079.
2.16. Encerramento ou prorrogação dos arrendamentos
atuais
O art. 49 prevê o encerramento ou a prorrogação dos
contratos de arrendamento atuais. Como regra geral, os arrendamentos são
outorgados por até 25 anos, prorrogáveis por igual período (art. 5º, § 1º). Os
terminais autorizados, em comparação, têm prazos de 25 anos que podem ser
renovados sem qualquer limite máximo. Para os arrendamentos atualmente
existentes, o art. 49 prevê que devem “ser licitados com a antecedência
mínima de doze meses, contados da data de seu término”. O art. 49, § 2º,
prevê a possibilidade de prorrogação: “A prorrogação dos contratos referidos
no caput, desde que prevista expressamente, será condicionada à revisão dos
valores do contrato e ao estabelecimento de novas obrigações de movimentação
mínima e investimentos”. O dispositivo não é claro sobre quais “valores”
são esses; podem ser as tarifas portuárias, os pagamentos feitos pela outorga
ou pelo arrendamento ou ainda preços de referência eventualmente previstos no
contrato. O dispositivo se aplica, em tese, a qualquer prorrogação dos
arrendamentos vigentes. No entanto, em certos casos, o Poder Público será
obrigado a promover a prorrogação mesmo se ausentes as condições referidas no
novo dispositivo – por exemplo, no caso de prorrogação necessária como forma de
reequilíbrio contratual. Além disso, muitos terminais arrendados já existentes
adquiriram o direito à prorrogação com base na legislação vigente antes da MP
595, não podendo ter seu direito afetado por esta.
2.17. Adaptação e tratamento jurídico dos terminais
autorizados atuais
O art. 51 refere-se à continuidade das atividades
de terminais não sujeitos a arrendamento, atualmente existentes dentro de
portos organizados, desde que suas autorizações e contratos de adesão sejam
adaptados à MP 595 (art. 50). Há um primeiro problema na aplicação desta regra,
consistente em uma peculiaridade de redação. O art. 51 refere-se às instalações
portuárias do art. 8º “localizadas dentro da área do porto organizado”.
Porém, as instalações do art. 8º são as “instalações portuárias localizadas
fora da área do porto organizado”, não as instalações autorizadas em geral.
Desse modo, o art. 51 estaria se referindo às instalações portuárias fora do
porto organizado que estejam dentro do porto organizado, o que é uma
contradição em termos4. Há cinco interpretações possíveis, sendo
inviável neste momento saber qual prevalecerá: (i) o art. 51 deve ser tido como
não escrito, pois sua redação o torna ineficaz; (ii) o art. 51 se refere a
instalações atualmente fora do porto organizado, mas que sejam incorporadas por
uma ampliação da chamada “poligonal” do porto organizado; (iii) o art. 51 se
refere a instalações atualmente dentro do porto organizado, mas que sejam
excluídas da área do porto organizado por uma redução da “poligonal”; (iv) o
art. 51 se refere aos casos excepcionais de instalações portuárias fora do
porto organizado que estão parcialmente localizadas dentro do porto organizado
ou dependem das estruturas deste para o seu funcionamento (o caso de Portonave
pode ser um exemplo desta situação); ou (v) o art. 51 tem mero defeito de
redação, referindo-se a quaisquer instalações autorizadas (art. 8º, I a IV)
localizadas dentro das atuais áreas de portos organizados. Em termos jurídicos,
a alternativa (i) parece ser a correta; os terminais autorizados atuais devem
adaptar-se à MP 595 nos termos do art. 50, mas não lhes é assegurado que sua
atividade terá continuidade como consequência dessa adaptação. Essa conclusão
pode ser confirmada pelo próprio art. 50 da MP 595. O art. 50 não é claro sobre
o que a adaptação nele exigida implicará. Uma vez que a principal diferença
entre terminais arrendados e autorizados passou a ser o lugar em que estão
localizados (dentro ou fora da área do porto organizado), parece que esta
adaptação poderá consistir na assunção das obrigações novas (como a sujeição ao
compartilhamento de infraestruturas do art. 10 e a reversão de bens do art. 8º,
§ 3º) e na previsão de renovações sucessivas na forma do art. 8º, § 2º, o que
tornaria tais terminais virtualmente perpétuos. Porém, também é possível
entender que tal adaptação permitirá ao Poder Público retomar os terminais
autorizados fora do porto organizado para submetê-los ao processo seletivo do
art. 9º, após verificar a existência de dois ou mais interessados na exploração
do terminal de uso privado. Esta solução seria mais coerente com o sistema
inaugurado com a MP 595, que difere do anterior ao não estabelecer uma
liberdade plena na instituição de terminais de uso privativo, uma vez que impõe
o chamamento público e o processo seletivo simplificado do art. 9º. No mínimo,
deve-se estabelecer que os terminais autorizados atualmente existentes fora das
áreas de porto organizado não poderão ser prorrogados na forma do art. 8º, §
2º, sem antes submeter-se ao chamamento público e, eventualmente, ao processo
seletivo do art. 9º. Com relação aos terminais de uso privativo existentes dentro
dos portos organizados, a adaptação possível poderia ser a licitação do
terminal, para que seja submetido ao mesmo regime dos demais terminais
arrendados dentro de cada porto autorizado – como já referido em tópico
anterior. O art. 50 da MP 595 não parece permitir a mera aceitação dos
terminais de uso privativo existentes dentro das áreas do porto organizado, com
a possibilidade de uma sucessão ilimitada de prorrogações por 25 anos.
2.18. Novo desequilíbrio provocado pela MP 595 nos
arrendamentos atuais
A MP 595 cria novos riscos e dificuldades
competitivas para os terminais arrendados atuais. Dois aspectos parecem muito
claros em termos de mudanças conceituais no ambiente concorrencial. Primeiro,
pode ter havido um aumento na possibilidade de criação de novos terminais
autorizados fora dos portos organizados. Caso não se respeitem estritamente os
limites do uso privado reservado aos terminais autorizados, a disseminação de
terminais autorizados pode afetar a concorrência. Depois, haverá o surgimento de
uma concorrência assimétrica nova, a partir dos novos terminais arrendados
também. Até agora, os terminais arrendados eram obrigados a pagar importâncias
elevadas às autoridades portuárias, uma vez que o critério de julgamento nas
licitações era baseado no maior pagamento pela outorga. Os novos terminais
devem ser licitados com base em outros critérios, como a maior movimentação com
menor tarifa. Por decorrência, os atuais terminais arrendados passarão a
conviver com mais terminais de uso privado e com novos terminais arrendados que
não terão o custo do pagamento pela outorga. Tanto a lei de conversão quanto o
regulamento deverão tratar do tema para evitar a concorrência desequilibrada.
Essa nova competição autoriza os terminais existentes a buscar medidas de
compensação para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro dos seus
contratos de arrendamento.
2.19. Destruição do marco regulatório existente
A Lei 8.630 foi expressamente revogada, assim como
vários dispositivos da Lei 10.233. Esse foi um golpe radical no marco
regulatório que vinha sendo construído por quase vinte anos e que havia
permitido um crescimento notável no mercado portuário brasileiro. Juntamente
com a Lei 10.233, a já revogada Lei 8.630 criava um sistema claramente
definido, com um conjunto de instituições com variadas competências e uma
divisão racional entre concessões, autorizações e arrendamentos, cada qual
concebido para realizar determinadas finalidades no setor portuário.
2.20. Deficiências lógicas e de sistematização da
MP 595
Os problemas eventualmente existentes no setor
portuário durante a vigência da Lei 8.630 eram muito mais ligados à falta de
aplicação efetiva da legislação existente do que a deficiências no marco
jurídico e regulatório. O novo regramento não tem a racionalidade da lei
revogada e é difícil vislumbrar uma organização sistemática do setor portuário
baseada na MP 595. Além disso, a maior parte dos dispositivos importantes da
Lei 10.233 foi alterada para se tornar mais fraca mediante o acréscimo da
expressão “ressalvado o disposto em legislação específica”. Desse modo,
nem mesmo a Lei 10.233 pode vir em auxílio da manutenção da racionalidade do
marco regulatório – como fazia no regime da Lei 8.630, permitindo a compreensão
dos regimes de concessão e autorização no quadro geral do setor de transportes5
–, uma vez que na maior parte dos casos esta não prevalecerá em caso de
conflito com a MP 595.
3. Encerramento: a possível inconstitucionalidade
Esta análise é limitada à interpretação da MP 595 e
não compreende uma discussão da sua constitucionalidade. Podem-se discutir
diversas questões relativas à constitucionalidade da MP 595, tanto em relação
ao instrumento legislativo em si (a matéria teria que ser simultaneamente
“urgente” e “relevante” para justificar a edição de medida provisória) quanto
no que se refere aos dispositivos em si. Quanto a estes, há inúmeras objeções
possíveis em termos amplos – por exemplo, o próprio sistema adotado para a
organização do serviço portuário – e específicos, como no que se refere à eliminação
da exigência de licitação em muitas situações.
_______________
1 Alude-se a estes terminais por serem os referidos
como possivelmente irregulares na análise técnica do Tribunal de Contas da
União (TCU) existente no processo TC-015.916/2009-0.
2 Uma das análises realizadas pela área técnica do
TCU é referida em decisão disponível em
https://contas.tcu.gov.br/etcu/AcompanharProcesso?p1=15916&p2=2009&p3=0
(acesso em 26.12.2012).
3 Essa premissa foi fixada segundo o regime das
Leis 10.233 e 8.630 (v. MARÇAL JUSTEN FILHO, “O regime jurídico dos operadores
de terminais portuários no Direito brasileiro”, em RDPE v. 16, pp. 77/124) e
não há fundamento constitucional ou na MP 595 para que seja afastada.
4 Este defeito foi destacado por JUAREZ FREITAS em
exposição oral sobre a MP nº 595 ainda não convertida em manifestação escrita.
5 Sobre o tema, conferir MARÇAL JUSTEN FILHO, cit.,
pp. 116/121.